sábado, 1 de janeiro de 2011

Recordações...


Esfregava as mãos para tirar o excesso de terra. Sentia os grãos passarem por sua pele e, se pudesse colocar em palavras o que sentia, descreveria a essência de cada fragmento daquele solo. O vento passava-lhe pelos cabelos já grisalhos. O tempo batia a sua porta. O corpo já se cansava com mais facilidade, os reflexos já não eram os mesmos e nem os movimentos eram feitos com a mesma agilidade. Em compensação, havia aprendido a contemplar as coisas a sua volta com mais sabedoria. Em cada pessoa descobria um mundo de infinitas possibilidades. Em cada árvore, em cada animal de sua fazenda via uma essência divina que acalentava sua alma. Ao arar a terra sentia Deus na palma de suas mãos e quando apertava os grãos do solo contra sua pele sentia ter em si o zelo amoroso do criador para com a criatura, e sentia-se ao mesmo tempo esses dois personagens da história: era o Criador ainda em estado latente, tinha em si o desejo de criar, de modelar, de dar vida; e era a criatura servil e grata, que cuidava do lar que lhe foi concedido com todo o amor que sentia em suas veias.

Ao fim do dia, tudo ficava ainda mais belo. Ele voltava para casa devagar. Gostava de caminhar ao lado de seu cavalo, compartilhando com ele aquele momento, reconhecendo no animal um grande companheiro naquela jornada. O sol ia se recolhendo aos poucos, diminuindo a força de seus raios. Com a mesma leveza, as flores intensificavam seus cheiros, alguns animais despertavam para seu turno e o vento esfriava devagarzinho como se querendo apaziguar os movimentos, embalando o sono de todos os seres. Ele gostava especialmente deste momento do dia. O fim de mais um expediente nesta vida, o recolhimento silencioso da existência terrena. Nessas horas podia olhar de frente para o sol, a estrela de grandeza assustadora. Sentia a luz acariciar-lhe a pele como se fizesse uma limpeza em seu espírito. Ele abria seu coração e deixava-se invadir pela energia do fim do dia. Essa era sua oração, essa era a sua comunhão com Deus. Seus passos seguiam sutis, como o findar dos dias, e as palavras que escrevia nasciam inebriadas por toda sua contemplação.

E, todos os dias, antes de também se recolher, ao colocar sua cabeça no travesseiro, em sua confortável cama, em sua bela casa, pensava em todos os seus semelhantes encolhidos em suas taperas desconfortáveis e frias, mas que conseguiam perceber, assim como ele, a presença de Deus nas coisas mais simples. Olhava para a sua esposa ao lado, ainda bela, apesar de tocada pelo passar dos anos: ela tinha a sua disposição todo o tempo livre e todas as circunstâncias para que se dedicasse a sentir o divino, mas estava absolutamente imersa nos desejos do “ter”, consumida pelo que lhe faltava e ocupada com os pensamentos mundanos do consumismo. Como ele queria que ela sentisse aquela paz, que sentisse o abraço de Deus nas pequenas coisas, nas pessoas a sua volta, em tudo o que esse belo planeta azul nos oferecia. Mas ele não podia lhe ensinar. Podia apenas beijar-lhe carinhosamente a testa para lhe transmitir um pouco de todo amor que sentia: amor simplesmente, um amor desapegado de todos os objetos, de todos os desejos, um amor que não exigia dela nada além de sua existência.

Agradecia a Deus, e sentia o divino pulsar em seu coração. Entregava-se ao sono, embalado pela energia da noite, para que seu corpo já velho e cansado se recuperasse para o dia seguinte, quando continuaria a servir a Deus servindo a seus semelhantes, contemplaria a Deus contemplando o planeta, oraria a Deus reverenciando o findar de mais um dia, e honraria a Deus inebriando suas palavras com o mais puro amor que brotava de seu ser, e deixaria essas sementes para a humanidade para que, quem sabe um dia, alguém as conseguisse cultivar.

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